sábado, 30 de outubro de 2010

O PROBLEMA

Durante a vida experimentamos várias formas de lidar com o mesmo problema, mas muitas dessas formas são, simplesmente, formas de não lidar com o problema. O problema é a vida ela própria, somos nós - ou, melhor ainda, somos os nós, os nós que somos, cada um de nós.
Hoje sento-me aqui para escrever mais uma forma e não mais do que uma forma, mas uma forma de lidar com o problema. O meu problema.
Não sei quando me dei conta de que tinha um problema, mas provavelmente foi à nascença, ou então não teria desatado a mamar, a chorar, a espernear, a lutar com unhas e sem dentes. Hoje leio pessoas que falam poeticamente sobre a morte, sobre a primeira vez que viram a morte, sobre a incompreensão da morte e a recusa em confrontá-la, em chegar perto dela, em sentir-lhe o cheiro, quando esse cheiro é o mesmo da merda e do leite e a morte é, afinal, o mote da vida.
Mamar, andar, falar, estudar, trabalhar, casar, procriar para que outros mamem, andem, falem, trabalhem, casem e procriem - eis a puta da vida tal como se nos apresenta. Pois eu digo: hoje sei que a minha vida não é isto. Não é só isto, não é necessariamente isto. A minha vida é a minha vida. Por entre essas etapas todas a que não renuncio, a minha vida é também romper a placenta de culpa que me precede.
Entre as formas que já experimentei de lidar com o meu problema encontram-se vários ismos. Todos eles foram sombras que se me descolaram do corpo a cada pôr-do-sol. A cada morte. Hoje não tenho um ismo para dar. Tenho sentimentos intensos, tenho oitos e oitentas, tenho vida em bruto.
Este é o primeiro passo para uma pessoa como eu lidar com o problema. É assumi-lo. É pô-lo cá para fora, dar-lhe luz, dá-lo à luz. Todo o tempo gasto a experimentar formas de não lidar com o problema é tempo pré-Natal, é cadeia genética no sentido mais prisional do termo. Lapidar o diamante exige tê-lo.
Hoje é a hora de o meu problema sair à rua. De sair inteiro, impróprio para consumo. É o dia de vomitar o mundo e dizer que já o trazia dentro, este mundo, há colhões. É o momento de trabalhar para um outro mundo, com as competências todas de quem o conhece como a palma da sua mão, cansada de bater punhetas.
A crise e a depressão acompanharam-me o crescimento - essas, sim, sombras implacáveis -, foram o meu mundo, o meu segredo. Hoje o mundo dos outros conhece-o, estou nu. Tão nu como esse mundo aos olhos de si mesmo. Somos tão verdade com verdade como as batatas são batatas com batatas. O problema, pelo menos o meu, está objectivado.

Portugal é um País, o nosso País. Os mercados são, hoje, o mundo. E o país Portugal cresce ou decresce a mando desse mundo. Porquê? Porque Portugal não existe. Portugal está em coma num leito límbico, com os pés algemados por D. Sebastião e as mãos por Salazar, espelhos virados um contra o outro, reflectindo a infinitude, o cronismo, a inescapabilidade, para o caso de Portugal querer acordar do coma.
Em cada empresa, em cada emprego, a generalidade dos portugueses não atravessa nem um nem outro desses espelhos. São como esquinas à noite. A verdade é que, não o fazendo, a mesma generalidade dos portugueses está a ser atravessada por eles, em cada casa, em cada desemprego.
Chegou, pois, a hora do salto quântico. Aquilo de que sempre estivemos à espera surge com a imagem que menos esperávamos. Valham-nos as leis da física. O corpo, o nosso corpo, o meu, o teu, o dele, o nosso, o vosso, o deles, vai ter de se sentir em todas essas dimensões, únicas e múltiplas, pessoais e universais, o melhor que possa e saiba, e mexer-se, andar para a frente com os seus próprios pés.
Em menos de nada, o segredo do País vai estar tão cá fora como o meu segredo. Um novo espelho nascerá da fricção dos outros dois, como fogo vindo das pedras, e nele poderemos rever-nos, juntos, os que até hoje nem em separado se reviam.
Durante anos, uns, e décadas, outros, muitos de nós estiveram mergulhados em drogas, legais ou ilegais; durante esses anos, esses nós sentiram que o seu mundo estava doente, por não encaixar no mundo dos outros. Hoje, os mesmos nós podem saber que o mundo dos outros é, afinal, o mundo de uns quantos, poucos, muito poucos, que não querem encaixar no nosso mundo. Por isso é que o mundo, o mundo de todos, está em crise.
Chamem-me irresponsável, bipolar, o que quiserem. Sou isso tudo e mais alguma coisa. A minha forma de lidar com o problema é cada um de nós mudar o paradigma, virar o disco, venha quem vier: irmos para dentro cá fora, deixarmos de nos adiar em antidepressivos e sermos nós os antidepressivos do mundo. Cada um de nós.
Talvez assim se desatem os nós e o meu problema seja o teu e o dele e assim sucessivamente até, quem sabe, deixar de ser um problema.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RENÚNCIA

Uns dias bem, outros mal. Quão mentiroso é o horizonte! Quão aliciante e persuasivo se nos mostra naqueles dias, quão angustiante e negro se nos revela nestes. A paz é das montanhas e dos vales, dos medos e dos amores, ela habita toda a forma. Para ser minha também, falta que eu com ela aprenda essa adaptabilidade, essa renúncia infinita. Sentir, eis a questão. Sentir tudo. Abrir o peito às flores e às balas, deixar que o destino penetre a carne e a queime de toda a sensação, permitir que o corpo seja o altar onde a dor e o prazer juram e geram amor eterno. Fazer a parte que me compete, usar bem o meu testemunho, abrir caminho para quem vem depois. Viver no paradoxo como se fosse chão firme, que o é, afinal.
Escrever, o acto de escrever, uma das infinitas formas de sentir, tem sido para mim um claro exemplo disso: escrevo quando sinto que preciso, quando a alma se agita e quer que lhe conte histórias, quando estou por baixo; se assim não for, vivo. Escrever é, pois, para mim, uma forma de legitimação daquilo que procuro: viver. Como se esse grande propósito, assumido na sua plenitude, carecesse de sentido. Como se a vida, ela própria, não tivesse sentido. Se não tem, para que vivê-la? Mas, lá está, escrever é, para mim, a renda da casa. Deus deu-me esta moradia, este corpo animado, esta oscilação perpétua, com uma ordem própria que não domino mas, passo a passo, vou descobrindo nas coisas, nas vagas dos mares, nas fases da lua, no intangível jogo de espelhos que é o mundo, do poço mais fundo ao abismo do céu.
Passo dias de sonho, vivendo. Vou ao sabor dos passos que são e não são meus, num ritmo etéreo mas não aéreo, uma espécie de batida silenciosa. Os meus pés falam com o chão, conversam ora eu ora tu, demoram-se em passeios tão verbais quanto sexuais - e, em ambos os casos, fecundos. Acham que eles se preocupam com o destino? Nada. Ocupam o tempo até que alguém por eles, há quem diga que eu, decida interromper o coito. Coitado de mim: mais e mais culpa. Aonde quer que vá, o que quer que escave, encontro sempre culpa. Nos dias bons, agradeço-a como um cão lambe o dono por um novo osso, consciente de que atrás dele mais vida se abre, mais água corre entre o fulgor e o desespero; nos maus, ajoelho-me perante ela, todo rendição e revolta, resistindo a entregar-lhe a minha ausência de sentido, como quem resiste a deixar um filho seu em porta alheia.
Pois é. É que também passo dias de pesadelo, sonhando. A coincidência, e aparente contradição, entre sonho e pesadelo, entre viver e escrever, entre dia e noite, atesta e ela própria espelha o tal jogo de espelhos que é a existência, pelo menos a minha. Os espelhos, os que socialmente se convencionaram como tal, os que registaram a patente dessa condição, mostram a nossa imagem invertida, mas na vida tudo é nosso, tudo nos diz respeito, tudo e nada, a verdade e a mentira. Daí que o inverso de mim seja eu também. Daí que os dias bons sejam maus também, e vice-versa. Daí que escrever seja também viver. E daí, talvez, eu escrever. Não fora essa consciência e dificilmente o faria, porque não gosto de ir pelos meus dedos, não acredito neles enquanto entidade destacada do todo. Para mim, o cérebro de cada um é como um neurónio do universo: sozinho nada faz, tem de chocar, tem de criar faísca, ir na corrente. Só que, se me é mais fácil, por assim dizer, libertar o cérebro quando ando na rua, quando nado, quando medito, quando como, enfim, quando não me atenho a um ofício mental, sinto extrema dificuldade em consegui-lo quando escrevo.
Já muito pensei sobre isto, claro. O que é, aliás, mais um paradoxo, porque ao pensar estou a instrumentalizar o cérebro. Mas também já muito meditei sobre isto. Pensar e meditar são, no meu modo de sentir actual, coisas mais ou menos tão diferentes como viver e escrever. O pensar tem o seu teatro na roda mental, requer um departamento para existir, recolhe-se do que não lhe convém. O meditar absorve tudo, mesmo o pensar, até que este desapareça espontaneamente por defesa própria. O processo de escrita tem-mo mostrado, desde os dias em que fincava os olhos na folha branca e como que a inquiria, tentando extorquir-lhe uma mancha, um palmo de cadastro, para que nele pudesse lavrar, e ela, com a candura dos inocentes, me devolvia o olhar, sem mais em sua companhia que a frustração de ser nada o meu reflexo, de estar trancada a minha alma. De então para cá o que mudou foi a mudança, a alma ela própria de mim e de tudo; foi então o mundo, toda a vida, toda a escrita. Foi o sentir a dita frustração e começar a amá-la como o fio de sentido que me estava destinado puxar, o pedaço de vazio que me era levado à boca. Foi a noção de que o meu caminho se desenhava, afinal, na sombra do que eu havia desenhado para si mesmo, no inverso da imaginação, da conjectura, do pensamento, do sonho. Comecei a perceber que, em vez de escrever, o meu destino era ser escrito. E que melhor paradoxo? Li no destino que o tinha de escrever.
Mais do que me confrontar com a responsabilidade de palmilhar rumo a Deus, isso contribuiu decisivamente para que pousasse em mim próprio, como uma semente que inicia a sua aventura na fertilidade macia de um terreno que sempre a desejou. Continuei a passar uns dias bem, outros mal, mas a minha consciência do bem e do mal mudou desde que os enquadrei como dores e prazeres de crescimento, como mensagens provenientes da raiz que entrara por mim adentro com a firmeza etérea da luz matinal. Nem sempre as leio com a devida serenidade. Às vezes a sensação é tão intensa que me convoca inteiro, qual bombeiro apanhado na teia do fogo, vitimado pela violência das chamas. Mas mesmo dessas mortes saio vivo, com uma sensação de integridade mais ampla, como se o que deixei na batalha não me pertencesse.
Pode, compreendo, este caminho parecer inclemente a quem me viu e quem me vê. Posso dar a ideia de me ter tornado num egoísta insensível, num puro sangue que, apontado à sua própria loucura, esquece a poeira que levanta. A verdade, porém, tanto quanto a minha lucidez a sabe agora decifrar, é que me leio cada vez mais como a um livro, confiando ao abismo da liberdade a memória de cada página que viro, testemunhando a expansão da consciência por cada nova página em que mergulho. Se me perguntarem com que direito, assumirei não saber verbalizá-lo melhor do que deixando vir à luz estas linhas tortas, na fé sincera de que o contemplarão. Se assim for, a minha gratidão não caberá em nada, pois brilhará no meu íntimo a certeza de que o amor também se escreve.

O DESEJO

Nada expressa com a eloquência do desejo os limites do pensamento, como nada expressa com a eloquência do filho os limites do pai. O desejo nasce atado às expectativas de quem o criou, não podendo o abrir dos seus olhos dar-lhe a ver a liberdade essencial que o constitui. O meu pensamento formula um desejo e atém-se a ele, à sua sorte, prende-se a algo que lhe escapa, a uma magia cujo truque desconhece, ficando a glória ou a revolta do pensador suspensas do cumprimento ou da frustração desse desejo. Até que o pensamento se dilua ele próprio no céu da vida, muitos desejos partirão para lá como seus enviados, não causando surpresa que uns lá não cheguem e outros de lá não voltem. É preciso crer para ver, e crer mais não é do que viver. Crer é amar. O desejo representa a incapacidade, o medo de crescer, a recusa em abrir os olhos da alma. Daí que a expressão “matar o pai” adquira tanto significado na psicologia: matar o pai é justamente matar o desejo a que cada filho nasce agarrado.
Então, se em vida todos somos filhos e pais, por que haveria o pensamento de dispensar essa ruptura? E o que acontece quando o pensamento se livra do desejo que o agrilhoa? Ele voa consciente de si mesmo, ele plana e bate as asas consoante a eternidade, pois tudo se compacta para ele em cada momento, fazendo dele mesmo esse tudo, mostrando-lhe que ele é tudo e tudo pode, incluindo deixar de o ser. E ele deixa, claro. Ele deixa até que novo e novos voos o enraízem à liberdade, até que o amor de pensar em cada um afague no seu colo o medo do que cada um pensa de si, como uma mãe recebe, extenuada e feliz, o recém-nascido que tanto lhe custou dar à luz, depois de arranques e recuos, de conquistas e perdas, de ânimos e desesperos. Creio, aliás, que se não existe um equivalente materno da expressão “matar o pai” é porque a mulher, passando pela experiência de ser mãe, de conceber, desmonta a mecânica do desejo, encarna o sentido da vida e percebe que vale sempre a pena cobrir de amor e gratidão a nudez do sofrimento. Dar à luz é, pois, tirar às trevas, é salvar. Libertarmo-nos dos nossos desejos, aceitarmos plenamente o que nos oferece a experiência de existir, é dar à luz em cada instante. É darmo-nos à luz.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O SOFÁ DE PEDRA

A história que vos vou contar podia sair-me das mãos numa rajada, mas eu não nasci para ir directo aos assuntos. Percebi isso quando perdi a virgindade. Foi estranho. Os meus amigos tinham-me pressionado tanto a invadir a minha namorada que, na hora h, parecia que o meu pénis ia às finanças. Claro que ejaculei precocemente. O que vale é que não culpei o acto em si, culpei-o em mim, isto é, compreendi que sem sol não se faz praia, que cada prazer pede o seu clima. Com essa namorada, porém, o destino estava escrito. Como Deus, quando fecha uma porta, abre uma janela, o mesmo destino quis que, antes de conhecer a minha terceira namorada (e não a segunda porque à segunda nem as mamas lhe apalpei, apesar de ter andado dois meses com ela), eu descobrisse um sítio mágico, hoje dir-se-ia um spot, numa zona rochosa da praia de Cabedelo, para lá do Hotel Casa Branca, quem vem do Porto. Era um calhau talhado pela bravura do mar em forma de sofá ou chaise longue, um presente romântico do grande arquitecto para a minha pequena pessoa, como a lembrar-me de que nem tudo estava perdido. Reconheci logo ali um potencial extraordinário. E, assim que pude, numa noite cravejada de estrelas, levei lá a rapariga que, entretanto, me entrara pelos olhos. A conversa, a brisa costeira, a aura de altar impossível, com um véu lunar a sair-nos dos pés, na incerteza da água, para um horizonte também ele indefinido, mistificaram o beijo que acabaríamos por dar, certos de que haveria de ser o primeiro de muitos, como foi, e certos de que haveríamos de ser os últimos um do outro, como não fomos, nem sequer naquele sofá. Se é verdade que os casos de amor deixam sempre marca, a rocha ergonómica nunca se viu beliscada - também, quem é que ia beliscar uma rocha… - na sua infalibilidade como acendalha da mais crepitante das ilusões. Pelo tempo fora, tive ali a boca de cena perfeita para o ritual iniciático da paixão, uma espécie de zona (pouco) franca entre o divã e o confessionário, onde me encontrava sempre com cada nova mais-que-tudo, como num casting mútuo, de olhos apontados ao filme mais estrelado, a passar desde o princípio das noites na tela infinita. Um dia, ao cabo de muitos anos, dei-me conta de que a marginal de Gaia estava a ser substancialmente alterada, para que o usufruto de toda a linha de praia ganhasse qualidade, quer na perspectiva de quem passa, de carro ou a pé, pois a proposta era melhorar as estradas e construir um percurso pedonal de madeira até Espinho, quer na de quem fica, uma vez que iria ser ampliada a oferta de bares e esplanadas. Eu, claro que afastei essas promessas como quem abre as cortinas do quarto à espera de que o dia não esteja chuvoso e fui, disparado, procurar o calhau, mas, depois de umas voltas para trás e para a frente, não vislumbrei sequer o meu ponto de referência, que era uma curva, uma curva que já era, pelos vistos. Fiz uma espécie de varrimento emocional, que é como quem diz um apelo à memória afectiva para vestir a pele de detective, e corri as áreas rochosas, saltando de pedra em pedra, sem, contudo, descortinar o paradeiro do sofá. Se, por um lado, se me afigurava impossível, criminoso até, alguém ter removido dali o ex-libris costeiro do Grande Porto, por outro eu era obrigado a reconhecer que mais ninguém, além de mim, lhe atribuía esse estatuto, donde a minha frustração tinha uma raiz essencialmente egoísta. Voltei lá depois disso, em ocasiões dispersas, só para confirmar o desaparecimento, e ainda hoje, devo confessar, há um cantinho de mim que não se dá por convencido. Mas é mera teimosia. Afinal, a mulher com quem vivo, o amor da minha vida, nunca se sentou naquele sofá. Foi a primeira e única, como se, fechando a porta dos enganos, Deus me tivesse aberto, enfim, a janela da verdade. Por isso, acho que está na hora de pôr uma pedra sobre o assunto.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O CRIADOR DE PÁSSAROS

Hoje entrou uma gaivota na minha loja. Era escura, como se tivesse saído de uma chaminé, e tinha o bico preto. Um senhor que vinha a passar, também ele escuro, talvez indiano ou turco, não sei, é que me explicou que as gaivotas nascem assim e só uns meses mais tarde, como a luz que emerge das trevas, se cobrem de branco e amarelecem o bico, naquilo que mais parece um disfarce, uma candura enganosa, pouco condizente com os seus dejectos fecais, largados lá do alto, quais mísseis, para corroer as superfícies edificadas do mundo. À minha mercê, e logo à minha, ou não fosse eu um Cristo da fisiologia voadora, estava um tenro exemplar de gaivota, num precário equilíbrio de patas, mas aparentemente sem medo, curioso até, revelando vontade de fazer uma vistoria à loja e observar com detalhe cada um dos objectos expostos. O meu primeiro impulso foi olhá-la, certificar-me de que nada de errado, para além do óbvio, que era uma gaivota entrar, com ares de cliente, numa loja, lhe teria acontecido, tipo uma queda, uma luta, um ferimento. Depois decidi dar-lhe o seu tempo, deixá-la estar, até que, presenciando o crescer do seu conforto, optei por ir ao café em frente comprar um pão e seduzi-la com migalhas para junto da porta. Sem gestos bruscos, debicou uma e deitou-a fora, esclarecendo-me sobre a sua falta de fome. Na rua, alguns transeuntes iam parando, pelo insólito de uma montra-ninho. A vizinha do lado, tirada dos seus vagares, prontificou-se a resolver o caso e, assertivamente, mas com a necessária delicadeza, pôs a gaivota fora da loja. Como pegar-lhe e devolvê-la à mãe passou, então, a ser o problema. Alguém ali se lembrou de um caixote. Veio uma caixa de cartão apanhada no lixo. Assumia protagonismo a mais desastrada falta de jeito quando uma mão vinda não se sabe de onde ergueu majestosamente a ave e, contemplando os presentes com um olhar sagaz, explicou: “Fui criador de pássaros”. Eu já tinha visto a cena do médico que aparece exactamente quando um indivíduo cai no chão, acometido por um problema cardíaco, ou algo assim, mas o súbito surgimento daquele criador de pássaros, como um relâmpago vindo de todas as incapacidades ali presentes, afigurou-se-me extraordinário. Talvez por se ter apercebido disso, ou então por outra qualquer razão, quem sabe até por uma razão derivada da que levou a gaivota a entrar na minha loja, o rapaz escolheu os meus olhos como alvo da intrepidez, quase loucura, que enchia os seus. “Para lhe pegares, é assim, por trás”. Disse isto e ia-me passar o bicho, que gritava e tentava à força toda espetar-lhe uma bicada, arrancar-lhe a ponta do nariz. Eu, para trás, dei mas foi um salto. O criador de pássaros não me disse mais nada. Desandou, rua fora, com a gaivota nas mãos. Eu segui-o e vi que, minutos depois, já estava ela no seu habitat, provavelmente pondo a mãe ao corrente da aventura. Voltei para a loja constrangido, como quem acabou de ser ensinado mas não aprendeu a lição, e questionei-me sobre o sentido que faria o recém-terminado episódio, se é que fazia algum ou estava destinado a fazer. Mais tarde, na varanda de casa, interpelando a noite, ouvi um ruído de gaivota. E, como se uma luz alva tingisse o cinzento das minhas penas, assolou-me a ideia de que os sentimentos escuros não são mais do que pequenas águias que encalham no nosso íntimo e dele não saem enquanto não os conhecermos o suficiente para sabermos como e por onde lhes pegar, aonde querem ir e como os ajudar. Aprendê-lo, desprendê-los, deixa a mãe deles descansada e poupa-nos à sua visita. Bem hajas, criador de pássaros.

INTEGRAR É PRECISO

Imagine-se numa discoteca em que, ao soar de uma música conhecida, toda a gente converge para a pista. Você, por não estar seguro dos seus dotes rítmicos, fica a ver. Dentro de si, a vontade de participar no movimento colectivo debate-se com a falta de autoconfiança. Põe a hipótese de o melhor ser sair dali, mas, depois de antever a violência de se reconhecer como um derrotado, como um incapaz, opta por dar a ideia de que se sente bem assim, parado, apenas a olhar. Apoia-se, entretanto, na bebida e no tabaco - e, cada vez menos dono de si, questiona-se também sobre se estas ‘muletas’ não prejudicarão a imagem que está a transmitir aos outros, se não o tornarão ainda mais fraco aos olhos do todo, de que não sente fazer parte. A páginas tantas, junto a uma pessoa sua amiga que se aproxima e pergunta por que não dança, você assume não conhecer o léxico dos passos, não sentir o ritmo, não acreditar nas suas capacidades, enfim, tudo somado, confessa-lhe que é a pessoa errada no lugar errado.
Agora imagine que o lugar errado é o lugar, ponto. Ou seja, não há outro. Você tem de aprender a dançar. Rendido à inevitabilidade, já depois de aceite o facto de que prolongar a recusa só lhe vai causar mais sofrimento, percebe que, para se integrar, necessita de superar os seus medos. Aí, a sua amiga ajuda-o a relativizar o peso dos outros, da massa dançante, dizendo que cada um está entregue a si mesmo, que se alguém olhar para si e gozar consigo, com o seu processo de aprendizagem, é porque esse alguém não usa da verdade, ele próprio não está seguro de si e assume a estratégia mais fácil e mais cobarde para se legitimar ali, que é procurar sacudir para outra pessoa a chacota de que teme ser alvo. Você, contudo, nesse momento, acha mais possível a mimese do que a expressão individual - está nos antípodas da liberdade e só quer passar despercebido. A música, por outro lado, não bate cá dentro, não faz eco no seu corpo, não o aquece, só o petrifica. A sua amiga passa por si, pisca-lhe o olho e diz-lhe para sentir, mesmo parado. Diz-lhe para ver como um direito o que se lhe afigura como um dever. Diz-lhe que numa piscina há os que nadam impecavelmente, os que disparatam, os que brincam, os que chapinam, os que dão mergulhos, e todos se divertem. É nisto que as metáforas são úteis. Você reflecte e faz um gesto tonto. Ri-se. Depois faz outro. Ou seja, assume o ridículo, é-lhe mais fácil, para início. Está na margem oposta à do pretendido, mas está porque quer, não porque almejou a outra e, dando um passo maior do que as pernas, caiu ao rio. Pelo menos, sente, já está lá, no quadro grande, no todo. Pouco a pouco, vai pondo um pé na água, outro, molha a perna até ao joelho, depois demove-se, com o frio e a corrente, espera um bocado, volta a fazer o mesmo, depois as coxas, ainda sentado na margem, e alguma coisa, que já não alguém, que já não a amiga mas alguma coisa sua, uma voz interna, lhe vai dizendo que o processo não é assim tão mau, até provoca sensações curiosas, agradáveis. Paralelamente, a ideia de chegar ao outro lado vai perdendo importância, embora com uma lentidão que retira nitidez a uma consciencialização sua das pequenas vitórias que grão a grão, como numa ampulheta que se vira ao contrário, está a acumular. Mesmo que demore muito a sentir a utilidade deste trabalho pessoal para o todo, já sente a utilidade pessoal de todo este trabalho, e isso é fundamental. Tem aí, de resto, um sinal claro de que o objectivo tende a abstractizar-se à medida que o processo se concretiza, ou seja, de que ele existe apenas para desaparecer, qual miragem no deserto, e isso, por paradoxal que pareça, não só não o demove como o motiva, fá-lo aumentar a capacidade de saborear as coisas, os momentos, cada vez com mais detalhe, dando-lhe a ideia de que a sua sensibilidade se subdivide, se reproduz, se multiplica. O eu que fiscalizava dilui-se pouco a pouco no eu que se mexe e, de um modo cada vez menos racionalizado, entram ambos no ritmo, dançando juntos. O primeiro passo fluído da dança é o primeiro passo fluído da integração, o eu e o eu já só um, olhando o tu olhos nos olhos, com apetite. A partir de então, como numa penetração sexual, tudo se humedece e abre, espantosamente. Parece que o mundo é seu, mas é e não é, ou melhor, é tão seu como do Outro. O orgulho da autosuperação leva-o a exibir-se, a exagerar na presunção de domínio, a abusar do poder. A sua amiga aproxima-se e, gentilmente, pontua-o, lembrando-lhe que uma guerra ganha tem muitas batalhas perdidas. A noite desliza consigo e, música a música, corpo a corpo, você vai percebendo que um novo dia está para nascer. Seja bem vindo ou bem regressado.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

MUNDO FANTASMA

Quando eu era pequeno, diziam-me para não acreditar em fantasmas, que eles não existiam. Hoje dizem-me o contrário: há-os por todo o lado. Os últimos de que ouvi falar, devido ao novo filme de Polanski, em estreia nas salas portuguesas, foram os escritores-fantasmas, gente que escreve por encomenda e vende a própria autoria, ou seja, permite que o cliente assine o trabalho, como se fosse seu. Eu acho que isto merece uma reflexãozinha, convocando a sociedade em todas as suas frentes. É que talvez estejamos a abusar da paciência de Platão e a esticar demasiado a corda que ele nos deixou para podermos aceder ao nosso estado puro. A metáfora de sermos sombras de nós próprios é isso mesmo, uma metáfora. Serve para desenvolvermos as virtudes que temos e perseguir a utopia de nos tornarmos iguais ao nosso melhor. Não serve, ou não devia servir, para comprarmos sombras que façam de nós sombras de sombras, para desenvolvermos os defeitos que temos e fincar pé na distopia de nos tornarmos parecidos com o nosso melhor. A verdade é que, assim, a mentira alastra. Os mistérios (como, aliás, os ministérios, ou não se falasse há muito de governos-sombras e coisas do género) tornam-se cada vez mais densos. As sociedades, em lugar de se desnudarem, ganham camadas. A floresta, que não a verde, escurece. E todos nós sentimos razões para voltar a ser crianças com medo do escuro. O que é, neste cenário, a informação? Vejamos, sem qualquer tomada de partido, ou seja, apenas a título de exemplo, o caso dos prisioneiros políticos de Cuba. Não poderão ser eles homens pagos para dizer o que dizem, mártires-fantasmas? Que certificados temos? E, se os houver, não poderão ser certificados-fantasmas? E assim sucessivamente, até um infinito lodoso, até esgotos nunca dantes navegados? Eu não me comprazo na profecia da conspiração, não contem comigo para gastar energias na espiral da desgraça, mas preocupa-me a falta de visão global com que estes actos-sombra, alegadamente inocentes na sua estrita dimensão profissional, são cometidos. Um escritor-fantasma deve ter noção de que, ao escrever a autobiografia de alguém que, podendo ser analfabeto, vai mentir ao seu público, se torna também um mentiroso-fantasma. Ou seja, não pode ficar só com a parte boa e dizer que o que fez foi por trabalho. O dinheiro que ganha na escrita-fantasma é pelo menos equivalente à credibilidade que perde na mentira-fantasma. Devia ser assim. Mas não é. Estamos numa fase do mundo em que, para o bem, todos nos dizemos contribuintes, mesmo que seja precisa alguma benevolência, ou a alusão ao efeito-borboleta, para atribuir uma quota-parte de responsabilidade nesse bem à actividade que exercemos. Para o mal, nenhum de nós ajudou, nenhum de nós sequer viu, de tão comprometido que estava com o com o seu labor inóquo, no seu departamentozinho estanque. Isto, esta forma de pensar, contemplando o benefício próprio apenas dentro da sua dimensão mais mesquinha, mais pequena, mais egocêntrica, e desprezando a evidência da globalidade do ser, do cordão umbilical que nos une a todos, está a levar a sociedade para um patamar de irresponsabilidade assustador. A própria ciência, no seu afã evolutivo, parece às vezes caminhar sozinha, obcecada consigo mesma, esquecendo a complexidade do mundo em que vive e o facto de as descobertas só se poderem considerar benéficas após a avaliação do seu aproveitamento. Aliás, os próprios cientistas, na sua qualidade de homens como os outros, estão à mercê de convites para se converterem em cientistas-fantasmas, em cientistas-sombras. Temos ouvido falar, com insistência, do neuronegócio, e isso, evocando Huxley, prefigura um arrepiante mundo novo. Não se infira daqui que eu me oponho ao desenvolvimento científico. Bem pelo contrário, toda a observação me parece imprescindível, essencial. Mas, tanto em termos de princípio como de método e objectivo, ela não deve descartar, como pano de fundo, a conexão entre sujeito, objecto, domínio específico e contexto global. Se os cientistas idóneos, responsáveis e dignos, que serão muitos, estou convicto, não o fizerem, cedendo a uma pressão crescente de interesses também eles cada vez mais sombras, tornar-se-ão responsáveis, tanto como quem os suborna (e ainda que queiram, em prol da ciência, varrer para debaixo do tapete a consciencialização desse suborno), pelas consequências nefastas que o planeta venha a sofrer. O problema que se põe aqui, no fundo, é o da consagração de uma coisa foneticamente próxima da meritocracia: uma mentirocracia. Um mundo-fantasma, com homens-fantasmas (assinale-se, a propósito, o visionarismo de Sérgio Godinho), leis-fantasmas, governos-fantasmas, empresas-fantasmas, dinheiro-fantasma, instituições-fantasmas e valores-fantasmas, onde a luta já não é por um lugar ao sol, mas por um lugar à sombra.